naia alban
Aeroclube
De parque público a shopping efêmero
Artigo: Naia Alban Suarez
AEROCLUBE, DE PARQUE PÚBLICO A SHOPPING EFÊMERO, In: Periódico Gazeta Mercantil Bahia, Salvador, 1 e 2/dez1999 p. 2, Primeiro Caderno.
ATT: ANA RUBIA
GAZETA MERCANTIL
AEROCLUBE, DE PARQUE PÚBLICO A SHOPPING EFÊMERO
Naia Alban *
Inaugurou-se o Aeroclube Plaza Show. Na lembrança, um longo processo de projetação de quem participou do Concurso Público Nacional de Idéias para Urbanização do Parque do Aeroclube, no ano de 1992, como arquiteta coordenadora da equipe que ficou em terceiro lugar. Um processo de pensar, discutir e propor dentro dos parâmetros exigidos por um edital legítimo para uma comissão julgadora idônea.
Diante do que foi construído na área do Aeroclube ficam as perguntas: O que ficou desse processo de idoneidade? Qual foi o sentido de um concurso de idéias para uma área pública?, Qual o respaldo desse concurso até chegar ao produto construído? As deformações que o projeto vencedor sofreu extrapolam o poder de uma comissão julgadora legítima e idônea usada para legitimar um posterior processo dúbio. Uma prática que vem acontecendo nos concursos públicos baianos onde o interesse público se confunde com o privado, ou talvez, na melhor das hipóteses, uma gestão pública ingênua que não consegue ver e dar limites a uma parceria econômica.
Cabe pensar um pouco nos avais que nossa postura ingênua - enquanto arquitetos, urbanistas -, está dando para as grandes transformações urbanas. Lembro a Paralela. Uma proposta legitimada por um urbanista de reconhecimento internacional, Lúcio Costa. Um parecer dado para a Prefeitura de Salvador em 1972, onde Costa aprova o Vetor de Expansão Norte com suas duas grandes vias de circulação, como propõe também todo um planejamento de ocupação do solo, comprometido com a melhoria da qualidade de vida da população de Alagados, para a área recém-infraestruturada. Abrem-se os novos acessos com o dinheiro público e a proposta socializante das áreas para ocupação destes terrenos fica esquecida no tempo. Calam-se os técnicos, lucram os empreendedores privados que especulam a área a preço de solo rústico. Também penso nos tão divulgados milhões investidos nos Concursos das Macro-Áreas e Áreas Estruturantes do Subúrbio Ferroviário de Salvador, realizados em abril de 1999, muitos deles até hoje sem a assinatura do projeto para seu desenvolvimento. A lógica é que, uma vez legitimados enquanto processo democrático, já não importa quem o fará e o que se construirá em seu lugar.
A proposta vencedora do Aeroclube, coordenada pelo arquiteto Wilson Andrade, possuía uma indicação na planta geral de uma reduzida área para um centro comercial, inserido em um bonito trabalho de pisos, jardins e movimentos de platôs poeticamente desenhados pelo arquiteto Burle Marx. Como contraponto dessa proposta, o empreendimento de peso do projeto era um parque de águas. Curioso perceber que, em uma realidade européia ou mesmo americana, a possibilidade de ter essa participação de um paisagista reconhecido mundialmente, seria um elemento estruturador do projeto, algo imutável, ou melhor, definidor de uma postura do Município frente a qualquer negociação com o capital privado. Qual a cidade do mundo que não gostaria de ter um parque cujo paisagismo assinasse Burle Marx?
A pequena área destinada para centro comercial do projeto vencedor cresce como um vírus e ultrapassa a dimensão proposta no edital do Concurso do Parque Público do Aeroclube, que determinava que apenas 25% da área seria negociada com o capital privado para gerar recursos para a implantação dos 75% de um parque público. O que ficou garantido ao primeiro colocado foi a autoria do projeto arquitetônico aos arquitetos responsáveis da equipe - André Sá e Chico Mota. Mas, quando da parceria com o capital privado, este teve o poder de transformar, demolir e reestruturar toda uma idéia, impor suas necessidades como definidoras baipassando todas as determinações anteriores dos representantes competentes. Legitimar-se-ia assim uma ocupação do espaço do município através do que há de mais democrático, um Concurso Público Nacional, - esta grande bandeira levantada pelas associações de arquitetos - e deforma-se frente às necessidades de um capital privado que pensa ter o poder em seu nome de sucesso, um empreendimento do Grupo Iguatemi.
Deste modo, a proposta/investimento para o Parque do Aeroclube ganha novas proporções, outros valores, uma nova idéia enquanto empreendimento. O então parque deixa de ser o protagonista da área pública, para se transformar em área residual ajardinada. A arquitetura ganha outra cor, a cor pastiche, a cor do capital, da arquitetura plástica descartável, a pretensão de ser o que não é, um parque temático de consumo feito para Miami, para uma vida entorpecida, desvinculada de conflitos, sorridente e trivial. Temos enfim inaugurado nesta área pública, fruto de um concurso público nacional, uma grande coisa que dizem ser um shopping, e que sabiamente já recebeu o apelido de “Carandiru”, com seu grande estacionamento, palmeiras, um resto de canteiro de obras e nada mais.
Esta arquitetura pensada para uma vida falsa e amável não chega a acontecer por vários motivos. Penso na arquitetura da fragmentação sugerida na sua forma, quando de uma rápida olhada. Mas quando os olhos param, fixam-se e compreendem o elemento construído, vemos que o edifício não consegue nem ser cenário para a comercialização da fantasia, nem ser um espaço que albergue os desejos das ficções temáticas. Na perspectiva de quem passa de carro, ele revela elementos de cobertura pensados para serem ocultos pelas platibandas. Texturas e cores que não se aproximam nem dialogam entre si; como o arco de metal treliçado em branco e vermelho brilhante que serve de marco de acesso a um conjunto pesado, arrítmico, de cores opacas pastel. Todo ele decorado de botões, quadrados , frisos que não emarcam nada, não proporcionam uma ruptura da fachada chapada como volumes nem mesmo como ilusão de volumes. Nos acessos do estacionamento, marcos como um pagode plano que não conclui, não revela, muito menos instiga algo que supostamente acontece no seu interior - realmente tapume sem conteúdo.
Uma proposta arquitetônica feita a partir da bidimensionalidade de seu desenho técnico: fachadas chapadas e plantas baixas agenciadas a partir de uma circulação pretendida. Fica demonstrada a falta de propósito dos volumes concebidos no tratamento dado ao lindo elemento circular – penso ser um grande reservatório - de peso e textura metálica que fazia parte do conjunto como um ruído positivo em sua estética geral e que recebeu uma textura porosa como acabamento, maquiando e homogeneizando as relações entre as massas e materiais do conjunto.
Uma construção que nasce a partir de um equívoco ao pretender ser um lugar comum do consumo, sem considerar o ambiente hostil onde se implanta. Estamos falando de uma área que alcança altos índices de salinidade, na direção dos ventos predominantes em Salvador, nordeste (verão) e sudeste (resto do ano). O desconforto de um vento salgado que umedece e cria o tato pegajoso muito conhecido de quem convive com o vento frontal do mar. Assim, ao projetar-se aberto, o empreendimento, de arquitetura barata enquanto solução arquitetônica, estrutura e acabamentos, repassa para os lojistas o alto custo de manutenção de suas fachadas de lojas totalmente desprotegidas e abertas a um alto índice pluviométrico ao ano, um vento agressivo, uma salinidade corrosiva e um sol causticante no verão. Propõe-se como arquitetura descartável, efêmera para uma sociedade de consumo que usa a novidade e joga fora. Um pequeno investimento para um rápido retorno.
Pensar esta arquitetura a partir de uma referência de puro consumo, tendo em mente os parques temáticos tão em moda na década dos oitenta nos Estados Unidos, decorre de uma ilusão. Primeiro, porque temos uma outra realidade de compra em Salvador e principalmente tratando-se da área em questão como parte do Bairro da Boca do Rio. Qual é o poder de compra desta população carente de parques urbanos e que tem na praia seu maior lazer? Apesar de tentar ignorar esta população vizinha - a pretensão é atingir uma população que se espalha pela orla em condomínios fechados até a praia do Flamengo -, ela se fará presente no espaço Aeroclube, que, além de barreira, serve de passagem para o espaço de lazer mais democrático baiano, suas praias. Segundo, porque esta classe alvo - o consumista médio baiano - não reconhecerá este espaço como verdadeiro cenário para o consumo, pois está acostumado a um templo do consumo climatizado, fechado, confortável e longe da incomoda miséria que os cerca.
Assim, por mais que exista uma intenção de empreender, entendemos que se trata de sucessos diferentes: o grupo financeiro, o lojista, e o poder público. Vemos também que não adiantam somente esta vontade e o prestígio de um grupo financeiro como o Iguatemí para garantir o sucesso de um investimento de tal porte. Aí está o Wet’n Wild para provar o contrário. Salvador, como cidade litorânea e de economia limitada, demonstra que são necessários mais que um respaldo econômico e uma boa mídia para que investimentos deste porte funcionem. Pena dos pequenos empresários baianos que pensam na garantia do Grupo Iguatemi ao relacionar o Grupo com o Shopping do mesmo nome, pois ficam claras as diferentes intenções de investimento do mesmo Grupo Financeiro, um se faz duradouro enquanto que outro é efêmero, circunstancial.
Passado o verão e o desfrute da sociedade baiana frente à novidade edificada, resta esperar que o salitre, os ventos e as chuvas mostrem o futuro do empreendimento. O que faremos - cidadãos e municipalidade - com esta herança construída ?
* Naia Alban
Arquiteta coordenadora do projeto premiado em
3º lugar do Concurso de Idéias para o Aeroclube,
Doutora pela E.T.S.A. de Madri-Espanha,
Professora Substituta da FAUBa.